“Cada um tem um pedaço de culpa no caixão de Bernardo.” Em Janeiro, a procuradora Dinamárcia Maciel recebeu uma criança de 11 anos nas instalações do Ministério Público de São Luiz Gonzaga, no estado brasileiro de Rio Grande do Sul. Bernardo Uglione Boldrini, como se chamava, trazia um pedido invulgar: queria uma família nova, porque a que tinha não gostava dele.
Desde que a sua mãe se suicidara, em 2010, Bernardo sentia que o seu pai se preocupava mais com o trabalho e com a namorada que com ele. Da madrasta não gostava e dizia que ela lhe faria mal assim que tivesse uma oportunidade. Queixas não faltavam, e a criança falava até numa tentativa de assassinato.
O juiz que tomou conta do processo decidiu dar uma segunda oportunidade e a família manteve a guarda da criança. Afinal ele vinha de uma “família modelo” da pequena cidade de Três Passos: o pai, Leandro Boldrini, é um médico conceituado, e a sua companheira, Graciele Ugulini, é enfermeira.
Na semana passada, Bernardo foi encontrado morto numa valeta a 80 quilómetros da casa onde há muito vivia contrariado. Segundo a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, o pai, a madrasta e uma assistente social serão os responsáveis pelo assassinato e estão todos já em prisão preventiva.
A madrasta, Graciele, foi acusada pela cúmplice do casal, Edelvânia Wirganovicz, que já confessou a sua participação. Em troca receberia cerca de 8 mil euros. O pai escapou às acusações da assistente social, mas ao i a delegada encarregada da investigação, Caroline Bamberg, garantiu que a polícia já tem “provas fortes do seu envolvimento neste caso”. Quando na semana passada o juiz da Vara da Infância e da Juventude do Fórum de Três Passos, Fernando Vieira dos Santos, ouviu pela segunda vez falar de Bernardo já não havia nada a fazer: as aulas na escola local tinham sido suspensas dado o choque dos seus amigos, enquanto os adultos começavam a empurrar para outros as culpas pela morte da criança.
O juiz disse logo em público que, na altura da sua decisão, Bernardo – a criança que preferiu até ao último dia dormir em casa dos amigos a ir para a sua – saiu “da audiência se sentindo protegido” pelo pai, mas a procuradora Dinamárcia Maciel já admitiu que poderia ter ouvido de outra forma as súplicas do menino que naquele dia lhe entrou sozinho no gabinete, e partilha essa culpa com todas as pessoas que sabiam dos problemas e nada fizeram. Diz estar de consciência tranquila profissionalmente, porque o “texto da lei” não a deixa fazer mais, mas a sentir-se “incompetente perante o imprevisível”.
“Vocês dizem: ‘Que horror, o Ministério Público não fez nada.’ Eu digo: ‘Que horror, o senhor e a senhora que sabiam disso não procuraram a promotoria e nem o juiz da Infância.’ Cada um que não nos trouxe essas informações tem um pedaço de culpa no caixão do Bernardo em Santa Maria”, disse aos jornalistas Dinamárcia dividindo por todos a responsabilidade de uma morte que poderia ter sido evitada.
O único que fez tudo para que o desfecho fosse outro foi mesmo Bernardo. A delegada responsável pela investigação explicou ao i que a criança fez o que estava ao seu alcance para escapar a este fim: “Nas escolas as crianças são informadas desde os primeiros anos de que devem ir à Promotoria de Justiça se se sentirem ameaçadas. Ele fez isso”, concluiu. Desde Novembro que o Ministério Público (MP) e as entidades de protecção de crianças em risco estavam a acompanhar este caso. Bernardo foi assassinado cinco meses depois, no dia 4 de Abril, e o corpo foi encontrado passados dez dias, já em avançado estado de decomposição. O seu pai só apresentou uma participação do desaparecimento dois dias depois. Dias em que esteve em festas com a namorada.
As autoridades conseguiram reconstituir o que se passou no dia em que Bernardo foi levado pela madrasta a uma localidade vizinha de Três Passos: durante o percurso, as câmaras de videovigilância das bombas de gasolina onde pararam revelam uma criança calma, sem receio, o que não era hábito quando estava com a namorada do pai. A promessa de que lhe iriam comprar uma televisão terá sido o isco, acreditam os investigadores. No regresso, outras câmaras voltam a captar Graciele com a sua amiga e cúmplice, mas Bernardo já não está com elas. Foi levado por ambas até a uma mata onde lhe injectaram doses elevadas de um anestésico. Já adormecido – não se sabe ainda se já estava morto – foi colocado num buraco que teria sido feito dias antes.
Quando no dia 14 a assistente social que fez essa cova decidiu confessar o crime e levar a polícia ao local, encontraram o corpo em estado de putrefacção, porquea soda cáustica com que a madrasta o regou tinha ajudado a degradar os tecidos mais depressa. A morte de Bernardo poderá explicar melhor a morte da sua mãe, em 2010. Na altura a investigação concluiu que Odilaine Boldrini se matara na clínica de que era proprietária com o pai de Bernardo e onde já trabalhava Graciele. E, caso surjam nesta investigação novos dados sobre a morte da mãe de Bernardo, o processo de 2010 será reaberto por determinação do MP.
Foi a primeira vez que Dinamárcia Maciel viu uma criança ir sozinha à Promotoria de Justiça para se queixar. Admite que pelas limitações da lei não podia dar-lhe a família nova que ele pediu, mas descansa-a ter cumprido a promessa que lhe fez antes do abraço de despedida. “Quanto tempo vais levar para ver o meu caso? Uma semana? Eu não posso ficar mais numa família sem jeito.” Sete dias depois o MP enviou o processo para o juiz pedindo a entrega da guarda à avó.
Dinamárcia Maciel – Procuradora brasileira Rio Grande do Sul
“Esta morte tem de mudar a lei e responsabilizar a sociedade”
O MP brasileiro não poderia ter garantido os direitos do Bernardo e, com isso, evitado a sua morte? Este caso começou a ser acompanhado em Novembro e em causa estava o abandono afectivo de uma criança de classe alta. Os órgãos que têm responsabilidade de fazer valer os valores das crianças e o MP, que tem o direito de zelar pelos direitos dos menores juntamente com os juízes, formam a rede de protecção que acompanham estes casos.
Mas foi feito algo assim que o caso foi conhecido? Em Novembro eu pedi
um levantamento da real situação do menino e assim que recebi o relatório mandei ouvir a avó materna, que vive num outro município. Foi nessa altura que o Bernardo decidiu vir aqui sozinho falar comigo.
Pode descrever essa conversa? Conversámos longamente e ele não chorou, era uma criança amadurecida, que não fez chantagem nem tentou impressionar. Disse só que a família dele não tinha jeito e que ele tinha encontrado sozinho uma solução para a sua vida: precisava de uma família nova e por isso tinha vindo ter comigo. Disse até qual seria a família que queria, mas essas pessoas acabaram por recusar ficar com a sua guarda para não quebrar o bom relacionamento com o seu pai, que é um médico conceituado.
E o que lhe contou sobre o ambiente em casa não era suficiente para aceder a esse pedido? Não. O texto da lei diz que só se pode retirar uma criança em situações extremas e ali só havia suspeitas de agressões psicológicas e de abandono afectivo.
Ele pediu-lhe mais alguma coisa? Perguntou apenas: “Quanto tempo vais levar para tratar do meu caso? Uma semana? Eu não posso ficar mais numa família sem jeito…” E no final disse-me que talvez fosse melhor o pai não saber que ele tinha estado comigo.
Pessoalmente, como tem lidado com esta situação? A dor, como mulher e mãe, de perceber a minha impotência perante o imprevisível é devastadora. Hoje sou outra pessoa, sei que profissionalmente fiz o que podia, mas cresci como pessoa.
O que deve acontecer para que não existam mais Bernardos? Em primeiro,
a sociedade tem que começar a responder pela responsabilidade que tem sobre as crianças. Agora que o Bernardo foi morto todo o mundo diz que sabia dos maus-tratos, mas quando algo podia ser feito ninguém disse nada ao MP. Isso é crime aqui, crime de omissão de socorro.
Mas a culpa deste desfecho é só da sociedade?
Não. Cada um tem um pedaço de culpa no caixão do Bernardo. Este caso tem de servir até para aperfeiçoar a lei. Em caso de suspeita de maus tratos, a lei tem de me permitir tirar uma criança à sua família, actualmente não posso.
Fonte: Jornal i